Consumir ou ser consumido: dilema cristão pós-moderno
A
diferença entre consumo e consumismo é que no primeiro as pessoas adquirem
somente aquilo que lhes é necessário para sobrevivência. Já no consumismo a
pessoa gasta tudo aquilo que tem em produtos supérfluos. Podem não ser de boa
qualidade nem os mais indicados, porém ela tem curiosidade de experimentar
devido à propaganda e ao apelo dos produtos de marca.
No entanto, a
definição de necessidade e de supérfluo é algo relativo, já que um produto
considerado supérfluo para alguém pode ser essencial para outra pessoa, de
acordo com as camadas sociais a que a população pertence. Isso pode gerar
violência, pois as pessoas que cometem crimes na maioria das vezes não roubam
ou furtam por necessidade, e sim por vontade de ter aquele produto e não
possuir condições de adquiri-lo. Nesses casos, a necessidade de consumo se
torna uma doença, uma compulsão, que deve ser tratada para evitar maiores danos
à pessoa. Muitas vezes, o consumismo chega a ser uma patologia comportamental.
Pessoas compram compulsivamente coisas que não irão usar ou que não têm
utilidade, apenas para atender à vontade de comprar.
A explicação da
compulsão pelo consumo talvez possa se amparar em bases históricas. O mundo
nunca mais foi o mesmo após a Revolução Industrial. A industrialização agilizou
o processo de fabricação, o que não era possível durante o período artesanal.
Trouxe o desenvolvimento num modelo de economia liberal, que hoje leva ao
consumismo alienado de produtos industrializados. Trouxe também várias
consequências negativas por não se ter preocupado com o meio ambiente.
A Revolução Industrial
do século 18 transformou de forma sistemática a capacidade humana de modificar
a natureza, provocou o aumento vertiginoso da produção, resultando no
barateamento dos produtos e dos processos de produção. Assim, milhares de
pessoas puderam comprar produtos antes restritos às classes mais ricas.
A sociedade capitalista da
atualidade é marcada por uma necessidade intensa de consumo, seja por meio dos
mercados internos, seja pelos mercados externos. Com o aumento do consumo há
maior necessidade de produção, e o excesso de demanda leva à geração de mais
empregos, o que aumenta a renda disponível na economia e esta acaba sendo
revertida para o próprio consumo. Todo este processo leva a uma intensificação
da produção e consequente aumento da extração de matérias-primas e do consumo
de energia, muitas vezes de fontes não renováveis.
Às vezes, uma pessoa compra por
influência de outras que também são influenciadas pelas propagandas, filmes,
revistas etc. Ou seja, a sociedade cria um padrão, que tende a ser seguido
pelas pessoas. Algumas mulheres, por exemplo, escolhem um corte de cabelo,
roupas, sapatos e acessórios da moda porque se inspiram em alguma atriz famosa.
Em nossas sociedades houve uma
tentativa trágica de reencantar o mundo pelo consumismo e a diversão. O
consumismo promete preencher os desejos, necessidades e carências com
diferentes produtos, mas o faz de tal maneira que nunca fiquemos satisfeitos e
desperte em nós a necessidade, a compulsão de adquirir novos produtos que o
mercado produz sem recesso. O que começa como uma necessidade converte-se em
compulsão ou em vício.
Qualquer privação inesperada, irrita e frustra.
A fé cristã e a Eucaristia contam
outra história sobre a fome e o consumo. E essa não começa com a escassez, mas
com um convite à vida, e vida em abundância. O corpo e o sangue de Cristo
não são bens escassos, a hóstia e o cálice se multiplicam diariamente em
milhares de celebrações eucarísticas em todo o mundo.
O consumidor do corpo e sangue de Cristo, no entanto,
não permanece alheio ao que consome, mas se torna parte do Corpo. O ato de
consumo da Eucaristia não implica a apropriação de bens para uso privado, mas
sim ser assimilado a um órgão público, o Corpo de Cristo. Ali se comunicam
alegria e dor, abundância e falta, e se destaca a obrigação de os seguidores de
Cristo para com os famintos. Na dinâmica eucarística, famintos e
bem-aventurados se integram em Cristo e inauguram um novo modo de entender o
mundo e viver a realidade.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A Argila e o espírito -
Ensaios sobre ética, mística e poética' (Ed. Garamond), entre
outros livros